sexta-feira, 19 de abril de 2013

A mamã é médica #9

Uma leitora perguntou acerca deste post:"Já agora essa questão da penetrância incompleta expressa-se na generalidade dos genes ou só em alguns? (Sou bióloga e tenho curiosidade natural sobre o tema!) Ensinaram-me que por exemplo a hereditariedade do tipo de sangue 'não falha'. É mesmo assim ou já detectaram excepções?"

Felizmente para o comum dos mortais não geneticistas, a penetrância incompleta não ocorre na maioria dos genes. De outra forma só os especialistas conseguiriam entender as transmissões genéticas. Já em relação ao que lhe ensinaram sobre a hereditariedade do tipo de sangue, receio bem que esteja errado: o sangue é exactamente um dos exemplos de fuga às leis genéticas básicas previstas por Mendel - mas só em casos excepcionais.


Realmente, o que aprendemos na escola secundária em geral não contempla excepções cujas explicações ultrapassam o programa escolar. Como a esmagadora maioria das conjugações de grupos sanguíneos são explicadas pelas regras básicas do funcionamento dos genes, aquilo que não encaixa - até pela sua complexidade - é deixado de fora. 


A maioria das pessoas conhece (ou pelo menos deveria conhecer) o seu grupo sanguíneo: A, B, AB ou O. Podem ainda saber se são Rh+ ou Rh-. Mas muito provavelmente não sabem se são Langereis ou Junior + ou -. Acontece que se conhecem até à data 32 grupos sanguíneos diferentes, tendo os dois últimos atrás referidos sido descobertos há pouco mais de um ano.


É muito pouco provável que algum dia precisemos que todos os nossos grupos sanguíneos sejam caracterizados. Os mais frequentes sê-lo-ão, com certeza, no caso de algures na nossa vida precisarmos de uma transfusão sanguínea, por exemplo. Mas outros só serão necessários caracterizar no caso de intervenções médicas complexas, que incluem transplantes de órgãos ou novas terapêuticas contra o cancro, o que felizmente é raro. 


Acresce a isto que a transmissão genética dos grupos sanguíneos também é baralhada por fenómenos como mutações, formação de quimeras sanguíneas, penetrância incompleta, compensação ou recombinação genética. 


Isto faz com que seja possível, ao contrário do que aprendemos no secundário, que um pai do grupo O possa ter um filho AB ou que um pai e uma mãe com o grupo O tenham filhos de grupos A, B ou AB, ou ainda, para complicar mais um pouco, que um pai AB e uma mãe A possam ter um bebé do grupo O. 


Não querendo baralhar muito, mas uma vez que a leitora é bióloga, vou tentar explicar estes três casos muito resumidamente. Para isso, precisamos de rever três conceitos básicos em genética:


1º - cada um de nós tem duas cópias de cada um dos nossos genes - uma que recebemos da mãe e outra que recebemos do pai;
2º - estas cópias, apesar de pertencerem ao mesmo gene, têm versões diferentes (alelos); 
3º - por vezes um alelo é dominante em relação ao outro.

Grosso modo podemos comparar os genes e alelos aos carros. A mesma marca e modelo de carro (gene) pode ter duas ou quatro portas (2 alelos diferentes). Os carros fazem exactamente a mesma coisa se tiverem duas ou quatro portas, mas são carros diferentes.


No caso do grupo sanguíneo ABO temos três tipos de alelos: A, B e O, sendo o A e o B dominantes em relação ao O mas não entre si. Daqui resulta que podemos ter quatro tipos de grupos sanguíneos: grupo A (se tivermos os alelos A/A ou A/O), grupo B (se tivermos os alelos B/B ou B/O), o grupo O (alelos O/O) ou o grupo AB (alelos A/B).


Retomamos as excepções de que falei acima.


O primeiro caso pode ocorrer em várias situações: existe um tipo de sangue raro - Bombaim - em que os indivíduos podem ter os genes A ou B mas no teste de determinação do grupo (que só detecta a presença da proteína A ou B e não o gene) aparecem sempre como O (falsos O). Isto porque os portadores deste grupo sanguíneo não têm uma proteína (H) que se transforma nas proteínas A e B através da acção das proteínas produzidas pelos genes A e B.


Imaginemos que os genes são uma receita de culinária e as proteínas o alimento cozinhado que resulta da receita. Os genes (ex. A e B) até podem ter uma receita absolutamente deliciosa, mas se não têm os ingredientes certos disponíveis (ex. proteína H) nunca farão os cozinhados desejados (ex. proteínas A e B que serão testadas para determinar o grupo sanguíneo).


O primeiro caso também pode ser explicado pela existência de subtipos raros do gene A (Ax ou Am) ou pela existência de uma quimera sanguínea (algumas pessoas têm mais do que um grupo sanguíneo ABO ao mesmo tempo - são AB mas geneticamente são do grupo A e do grupo B - resultado da partilha in utero de células estaminais entre dois gémeos não idênticos).


O segundo exemplo pode explicar-se pela ocorrência de mutações (alterações no DNA) ao longo da vida de um ser humano. Estima-se que no dia em que nasce, um ser humano já seja portador em média de 100 novas mutações. E aqui entram os agentes mutagénicos de que tanto se fala: agentes físicos (radiação ionizante e raios UVC e UVB), químicos (substâncias cancerígenas como os hidrocarbonetos presentes no fumo do tabaco e radicais livres) e biológicos (vírus e bactérias). As mutações alteram a receita (gene) culinária e portanto o cozinhado obtido (proteína) vai ser diferente do previsto.


O terceiro exemplo pode explicar-se pela existência de um raro alelo (cópia) do gene do grupo sanguíneo ABO (cis-AB) que ocorre em alguns asiáticos ou japoneses. Neste caso, além dos clássicos alelos A, B e O temos também um cis-AB. Admitindo que nesses casos um dos alelos é sempre o cis-AB, qualquer que seja o outro alelo (A, B ou O), o grupo sanguíneo será sempre AB (porque o teste detecta a presença das proteínas A e B). Se imaginarmos o caso de um pai cis-AB/O e uma mãe A/O temos 25% de probabilidades de terem um filho O/O e portanto do grupo O.


Portanto, a genética básica com que estamos familiarizados funciona na maior parte dos casos, mas não em todos. O melhor é, antes de desatar a renegar pais e filhos, baseado em conceitos básicos de hereditariedade, consultar um geneticista. E, afinal, até parece que isso não acontece assim tão raramente. O caro esposo que frequenta este blogue é o primeiro a fazê-lo.



3 comentários:

  1. Bem, uma pessoa aqui fica alem de gira e boa, mais inteligente e culta! obrigada Teresa!!! :)
    sendo eu A- e o meu marido A+, somos portanto incompativeis de sangue o que fez que durante a gravidez tenha de ter levado a bela da injecçao assim como ate 72h apos o parto dependendo do tipo de sangue do bebé. Ora se em Portugal anotaram logo o tipo de sangue no boletim de saude, este ultimo que nasceu em França nao teve direito ao mesmo porque, disse a enfermeira, que o resus nao muda mas o tipo de sangue pode mudar... confirma-se???
    e posso comprovar o que disse aqui no post porque ca em casa somos, supostamente até à data, eu A-, o pai A+, o filho mais velho O+, o filho do meio O- e o mais novo O-! realmente sempre fiquei surpreendida por sermos A e termos sempre filhos O!!!
    Enfim, acho que realmente o pessoal e nao so as mulheres tem mesmo direito a livro/manual de instruçoes!
    beijinho, adoro o vosso blog, a vossa familia e obrigada por partilharem!:)

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  2. Muito interessante o post. Pode haver tambem alguma confusão com o RH ? Já obtive resultados de análises com RH- e RH+...

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  3. Muito obrigada pela interessante e completa explicação! Na verdade, mesmo na faculdade, embora não jure que ninguém tenha falado em penetrância incompleta, esta explicação aprofundada sobre a genética do tipo de sangue nunca me foi dada. Faz lembrar a física atómica - há uns anos atrás só havia neutrões e protões, que seriam as partículas básicas, depois afinal havia os quarks e agora estes também já foram pulverizados.
    E levanta outras questões - o que aconteceria se alguém do tipo de sangue Bombaim levasse uma transfusão de sangue do tipo A ou B?
    Mrs Anouska Papouska, a Teresa saberá explicar muito melhor que eu, mas de dois pais de tipo A pode sair um filho do tipo 0, basta serem ambos A/0.

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