terça-feira, 30 de julho de 2013

O contrato


Isto que vêem aqui em cima é um contrato, estabelecido entre Carolina Mendonça Tavares e Tomás Mendonça Tavares. Para o caso de alguém não perceber bem a letra, passo a descrever o seu conteúdo:

ACORDO

Dou-te uma pulseira de quatro se depois me deres a tua varinha do Harry Potter.

Ass: Tomás Tavares
Ass: Carol

Ora bem. Uma pulseira de quatro é uma pulseira de quatro fios em plástico colorido. Os fios compram-se nas lojas chinesas e os meus dois filhos mais velhos, entre pulseiras e porta-chaves, hoje em dia não fazem outra coisa. Sendo que a Carolina é mais habilidosa, claro, e controla os meios de produção - daí ser a responsável pela elaboração de tal "acordo", que parece um daqueles contratos de PPP em que uma das partes fica com quase todas as responsabilidades e a outra retira todas as vantagens.

Se repararem bem, o acordo está colado com fita-cola porque depois de o Tomás o ter assinado, para conseguir que a Carolina brincasse com ele, o meu filho n.º 2 tentou rasgá-lo aos bocadinhos (tipo novo governo que se depara com o preço dos swaps) para não ter de lhe dar a varinha do Harry Potter.

Não sei bem o que pensar disto. Eu sempre disse que a minha filha mais velha ia para Direito, tendo em conta a sua capacidade argumentativa e o facto de continuar a inventar desculpas mesmo quando é apanhada em flagrante delito. Acho que isto vem reforçar a minha tese.

O meu único medo, diante de tanto profissionalismo jurídico aos nove anos de idade, é que brevemente venha a sentir necessidade de contratar um advogado para regular a minha relação de parentalidade com a Carolina. Um dia destes ponho-a de castigo e ela mete-me um processo em cima.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Diálogos em família #18

- Papá, o Marcelo e a Judite são namorados?
- Não, Carolina. Que ideia. Porque é que dizes isso?
- Ele está sempre a dar-lhe presentes.

Quatro vezes um filho

Esta é a primeira vez que passamos férias em família com quatro miúdos, e à saída de Lisboa a nossa Sharan estava num estado inacreditável. Não cabia uma agulha no porta-bagagens. Por um lado, tive imensa pena da Teresa ao vê-la organizar as malas todas - vamos estar 20 dias fora de casa, e aquilo são autênticos trabalhos forçados. Por outro, tive imensa pena de mim, por ter subido e descido o meu prédio 32 vezes para enfiar 437 objectos no carro. Os números talvez sejam um pouco exagerados, mas demorei para cima de hora e meia, e pelo simples facto de eu ter conseguido fechar a porta da bagageira merecia que me fosse atribuído um doutoramento honoris causa em Tetris por uma universidade da Ivy League.

Mas claro está, dito isto e tendo eu elogiado a capacidade organizativa da minha excelentíssima esposa, devo dizer que ela nunca simplifica coisa nenhuma. A Teresa está sempre preparada para ter de sobreviver três meses sem água nem alimento se o apocalipse desabar sobre nós. No final, sobre a Terra restarão apenas a família Mendonça Tavares e as baratas. Bom, mas o que interessa para aqui é que a certa altura olhei para o material da praia e vi seis baldes de praia. "Seis baldes de praia?", perguntei eu. Sim, seis baldes: quatro para nós, mais dois para o Daniel e para o Ben, os filhos da maninha dela que chega da Irlanda. E olhem que nós nem sequer vamos para a praia. É só para brincarem numas praias fluviais da Beira Baixa, que nem areia têm. Ah, que tamanha capacidade para amar o próximo - geralmente à custa da minha sanidade mental.

É que, infelizmente, a excelentíssima esposa tem um problema: ela ainda não percebeu que tem quatro filhos. A sério. Eles saíram todos da sua magnífica barriguinha, mas ela não reparou nisso. E, portanto, a Teresa não age como tendo quatro filhos. A Teresa age como tendo quatro vezes um filho. O que não é, de todo, a mesma coisa. Ter quatro filhos, é ter quatro filhos. Simplifica-se, desenrasca-se, eles tomam contas uns dos outros, e está a andar. Ter quatro vezes um filho são para aí 12 filhos; é como se cada um fosse um filho único muito mimadinho, mas quatro vezes. Ou seja, é uma loucura todos os dias. Quando chega a altura das férias, então, só quero que me internem num hospício. No preciso momento em que escrevo, já estou doido e as férias ainda mal começaram. Durante os próximos 20 dias, se virem passar o Napoleão, já sabem: sou eu.


domingo, 28 de julho de 2013

166

Hoje é um dia especial, porque foi o último em que assinei a página "Os Homens Precisam de Mimo", na revista Domingo do Correio da Manhã. A partir de agora, os escritos sobre a família vão ser exclusivos do Pais de Quatro. Na primeira metade do próximo ano, se tudo correr como previsto, lançarei as crónicas do CM em livro. Eis o meu texto de despedida:

Ilustração de José Carlos Fernandes 

Embora os homens continuem – hoje, como sempre – a precisar de mimo, esta é a minha última crónica para o ‘Correio da Manhã’. Nestas ocasiões, os colunistas costumam sair meio acabrunhados, deixando um agradecimento aos editores (obrigado Fernanda, obrigado Paulo), umas indirectas aos directores (não há necessidade), e tchau, adeusinho, até nunca. Contudo, esta página aos costumes sempre disse nada, e por isso invoco o direito à diferença para, em vez de me queixar, celebrar o número que encontram no título: 166.

Durante 166 semanas, sem excepção, eu tive o privilégio de fazer da minha família e dos meus estados de espírito matéria de crónica, trazendo para aqui dúvidas, angústias, tristezas, incertezas, alegrias ou descobertas, cujo destino natural seria ficarem confinadas às paredes da minha casa – ou nem isso, porque nós, gajos, partilhamos tão pouco, que o mais provável é que tudo ficasse confinado às paredes da minha cabeça, acabando por se perder nos caminhos esconsos da memória, sempre tão selectiva.

Nesse sentido, esta página, e esta minha atitude rara (reflectir sobre a vida pessoal ainda é um hábito pouco comum entre os cronistas portugueses), teve uma dupla intenção: fixar histórias e perplexidades à medida que os filhos iam crescendo, para que o esquecimento não desabasse sobre elas; e partilhar aquilo que se ia passando na minha vida, porque somos todos mais parecidos uns com os outros do que provavelmente gostaríamos.

O resultado superou em muito as minhas expectativas. Destas crónicas nasceu um livro bem-sucedido e nasceram centenas, milhares de mails, mensagens, abordagens na rua, sempre com uma simpatia e uma generosidade que estou longe de merecer. Foram essas reacções que me provaram estar no caminho certo, quando no início duvidava se deveria fazer isto, se não seria uma exposição excessiva da minha família, se não pareceria ridículo. Só que aos poucos, em torno de ‘Os Homens Precisam de Mimo’ nasceu uma comunidade de leitores fiéis – e isso é o máximo a que um cronista pode aspirar.

Permitam-me um derradeiro abraço ao meu amigo José Carlos Fernandes, que por 166 vezes tornou as minhas crónicas melhores com as suas óptimas ilustrações. E reservo uma última palavra para si, caro leitor, que me leu semana após semana: acredite que aquilo que você me deu é bem mais do que aquilo que lhe dei a si. Muito, muito obrigado.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

O sms da Carolina

A Carolina está a passar a semana na Beira, na casa das madrinhas, como ela gosta de lhes chamar. E então pôs-se a espiolhar o Pais de Quatro. Encontrou o post sobre o passarinho - que eu preferia que ela não tivesse lido, mas enfim - e mandou-me o seguinte sms:

Obrigado pelo post que fizes-te [sic] sobre o passarinho. E sim foi uma grande lição para mim.

Tirando o facto de ir escrever 20 vezes "fizeste" da próxima vez que a encontrar, e de eu ter de lhe explicar para que é que servem as vírgulas, foi querido da parte dela. Na verdade, não sei que lição terá sido essa nem para que é que lhe servirá, porque a gente nunca sabe bem o que vai na cabeça das crianças, mas foi querido, mesmo assim.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Viva o baby boy!

Um amigo meu que estava a ver televisão na noite de segunda-feira enviou-me esta mensagem por sms: "Uma noite de sonho para o espectador progressista: papa e príncipes." Mas como nem eu nem ele somos particularmente progressistas (eu mais do que ele, ainda assim), devo confessar que tenho gostado de tudo desde segunda-feira até hoje, muito em particular da forma como Kate e William apareceram à porta da maternidade para mostrar o seu bebé.


Eis as coisas de que gostei:

1. Gostei que mostrassem o bebé com pouco mais de um dia de vida. É certo que é suposto ele vir a ser rei de Inglaterra, e portanto em certa medida é um bebé de todos os ingleses, mas celebro quem ainda expõe os seus filhos numa altura em que, por causa da defesa da privacidade e de medos de sei lá o quê, as crianças vão aos poucos desaparecendo das câmaras e, por consequência, dos espaços públicos.

2. Gostei do casal, acho que eles estão mesmo felizes, e do ar nada cagão com que se apresentaram, com o pai, na hora da saída, a colocar a cadeirinha do bebé no carro e a ser ele próprio a conduzir. É ridículo fazer o elogio da normalidade, mas tratando-se de príncipes e princesas, parece-me significativo.


3. Gostei da Kate continuar boa como o milho, e de aparecer com um cabelo esvoaçante que parecia patrocinado pela Linic. Adoro mamãs.

4. Gostei sobretudo que ela já ali estivesse de pé ao fim de tão pouco tempo, e que exibisse orgulhosamente a sua barriga pós-parto, ainda que num lindíssimo vestido azul e branco. Não houve aquela vergonha do "se calhar ainda não estou muito apresentável", ou "só apareço daqui a dois meses já no topo da minha forma", ou então "vou pôr um grande casaco para não se perceber que a minha pança ainda está super-inchada". Tudo ao natural. Bravo.

Em resumo, neste meu pequeno post cor-de-rosa, diria que começaram muito bem, sim senhor. Com sorte, William aprendeu com os papás tudo aquilo que não devia fazer quando crescesse. Às vezes essa é mesmo a melhor das lições.

terça-feira, 23 de julho de 2013

A vida é curta, pá. Bora ter um caso?

Se anda à procura de uma relação extraconjugal, mas quer ao mesmo tempo manter o seu casamento (suponho eu, que por vezes sou tristemente conservador e tenho alguma dificuldade em acompanhar estas modernices), parece que a partir de agora há uma resposta para si, através da rede social Ashley Madison, cujo mote é "Life is short. Have an affair." Ou, em português - que passou agora a existir -, "A vida é curta. Tenha um caso." O Público traz hoje a história toda. O título da peça/ entrevista é: "O negócio da infidelidade é à prova de recessão." Bom, ao menos que haja alguma coisa a sobreviver a esta crise.


Casa Arrumada

Uma leitura colocou nos comentários deste post um poema de Carlos Drummond de Andrade chamado "Casa Arrumada". O poema é tão bonito, tão verdadeiro e vem tão a propósito que, para não ficar esquecido numa caixa de comentários, resolvi trazê-lo para aqui, com a devida vénia - porque uma casa arrumada é, de facto, tudo isso. Ora leiam:

Casa arrumada é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida...
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos...
Netos, pros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia. Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.

Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.


segunda-feira, 22 de julho de 2013

Oh, que horror! Faz só mais um bocadinho!

O que achei mais curioso neste vídeo


não é a traquinice em si, embora o irmão mais pequenino seja um amor, mas a reacção da mãe. Ela está a fazer aquela voz do "deixa-me fingir que estou zangada contigo enquanto filmo esta cena absolutamente hilariante para a posteridade". Com o progresso tecnológico, os blogues e as redes sociais, o desejo de partilha de um episódio tão bom como este sobrepõe-se muitas vezes ao primeiro dever de uma mãe e de um pai, que é dizer convictamente "isto não se faz!".

Tem acontecido comigo algumas vezes, e no final fico sempre dividido entre o divertimento de ter captado um momento óptimo e os problemas de consciência que advêm do facto de os miúdos estarem certamente a perceber que há ali uma mistura de "não faças isto!" com "mostra, mostra, mostra!", e de isso não ser propriamente brilhante para a sua educação.

Esta coisa do "oh, que horror!, faz só mais um bocadinho!" é um problema muito actual, com o qual nós, pais digitais, ainda temos bastantes dificuldades em lidar. Eu tenho, pelo menos. Por um lado, é meeeesmo divertido. Por outro, se a gente se entusiasma excessivamente, tenho a sensação de que um dia destes um filho parte-se todo, nós filmamos primeiro e só depois é que ligamos para o 112.

Agora põe isso na boca de um adulto 7

Entretanto, já saiu a conclusão do episódio da etiqueta nas calças. Vale muito a pena:

domingo, 21 de julho de 2013

Da desarrumação


Ilustração de José Carlos Fernandes

Eis a minha crónica de hoje no CM. E atenção: a ideia de vestir assim a minha esposa não foi minha, ok? A culpa deve ser totalmente atribuída ao ilustrador. Cá vai:

A minha excelentíssima esposa acha que vive cercada por uma quadrilha de desarrumados, da qual eu sou o cabecilha. Quer dizer: não é que ela ache que eu desarrume mais do que os quatro filhos, mas acha definitivamente que “não dou o exemplo”. Segundo ela, é devido à minha pérfida acção e à minha insistência em colonizar áreas indevidas da nossa casa – como a mesa da sala – com livros e jornais, que os miúdos tardam em assimilar o seu rigor teutónico em termos de organização caseira. Resultado: no seu entender, eu estou a alimentar quatro mini-furacões domésticos, que deixam nuvens de roupa e de brinquedos por onde passam.

Desconfio que não seja o único espécimen masculino a ser alvo de tão graves acusações: quase todas as mulheres acham que os seus maridos são uma lástima em matéria de arrumação. Mas eu diria, em defesa da classe, que falta bastante subtileza a esta análise. É que, na verdade, os homens não são mais desarrumados do que as mulheres. Simplesmente, ambos têm ideias muito distintas acerca do que “arrumado” quer dizer.

Por exemplo, a excelentíssima esposa embirra à brava que eu deixe meias usadas ao lado da cama. Ora, provisoriamente desarrumado não é desarrumado. Tal apenas acontece por razões logísticas: quando um gajo à noite despenca no colchão, ir à cozinha pôr as meias no sítio da roupa suja seria um acto de tortura, proibido pela Convenção de Genebra. Em bom rigor, é apenas uma desarrumação provisória e nocturna, parecendo-me do mais elementar bom-senso suspender o conceito de desarrumação entre a meia-noite e as oito da manhã.

Mas o pior não é isso. O pior é que as super-arrumadas mulheres são extremamente selectivas quanto ao seu conceito de arrumação. Sendo altamente exigentes em relação a roupa, decoração da casa ou utensílios de cozinha, elas estão longe de estender a exigência a coisas como, por exemplo, as bagageiras dos automóveis. A sala estar um bocado desarrumada é trágico. Mas o facto da parte de trás do nosso carro parecer um armazém dos Companheiros de Emaús já é natural. Meias usadas no chão é horrível. Mas a acumulação de discos de música, filmes ou jogos fora das respectivas caixas torna-se aceitável. Ora, isto não pode ser. A mitologia do homem desarrumado tem de ser combatida. Nós não desarrumamos nem mais, nem menos, do que vocês, minhas senhoras. Simplesmente, desarrumamos diferente.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Não, não, não

Sou obrigado a admitir que a foto do post anterior foi muito mal escolhida. Várias pessoas olharam para aquilo e disseram-me que pensaram imediatamente que vinha aí o quinto filho. Por amor de Deus. As coisas que vos andam a passar pela cabeça. Não, não, não. Eu fechei a loja. Mesmo. Fechei a loja e atirei fora a chave. Já chega. Já fiz a minha parte pela perpetuação da humanidade e pela fertilidade da pátria. Tenho a certeza que o agregado familiar vai continuar a crescer, porque como toda a gente sabe eu não mando nada cá em casa. Mas a partir de agora só se aceitam cães e gatos. E a contragosto.


quinta-feira, 18 de julho de 2013

Mais não, por favor

Eh pá, ao fim de três semanas um gajo já não aguenta mais. Quem está total, absoluta e irrevogavelmente farto de ficar a dizer adeus às criancinhas na hora de elas partirem de autocarro para a praia levante o braço.


quarta-feira, 17 de julho de 2013

Carolina e o passarinho


No último domingo fomos passar o dia ao Badoca Park, aproveitando o facto de o tempo estar fresco. Na viagem de regresso, numa zona da A1 em que a autoestrada se eleva e fica no mesmo plano da copa das árvores que estão ao lado, um pássaro desconhecedor das regras da circulação automóvel saiu a voar em direcção à autoestrada e veio embater no pára-brisas.

Não aconteceu nada ao vidro do carro. Deveria ser um pardalito que, àquela velocidade, foi directamente para o céu das aves. Mas se não aconteceu nada ao carro, aconteceu alguma coisa à Carolina, que assistiu à cena e à pancada no pára-brisas. Ela ficou perturbadíssima com a morte do passarinho, meio lacrimejante e com a voz embargada. Por ela, eu teria travado a fundo em plena autoestrada e feito marcha-atrás para ver se ele ainda estaria vivo.

Mas, no fundo, o que mais a perturbou não foi bem isso, não foi a morte do pássaro só por si - foi eu não ter ficado tão perturbado com o que aconteceu quanto ela. Foi eu não estar a sentir o que ela estava a sentir. Claramente, a Carolina ficou a pensar para si própria: "porque é que o meu papá não está tão triste quanto eu?". E perguntou-me isso mesmo: "Papá, não estás triste?"

Disse-lhe que sim, que estava triste, mas que aquelas coisas acontecem. Tentei explicar-lhe que àquela velocidade o passarinho não tinha hipóteses de sobreviver, que o papá não tinha tido tempo de reagir. Contei-lhe também que não era a primeira vez que me acontecia, e que quem conduz tantos quilómetros como o papá dificilmente não terá já atropelado alguma coisa. Certa vez até fiquei sem a parte da frente do meu velhinho Fiat Punto ao atropelar um cão enorme ao pé de Abrantes. Foi horrível.

Mas, como explicação, tudo isto é fajuto. A verdade é que não há como ultrapassar a nossa hierarquia de sensibilidade em relação ao reino animal: atropelar um cão ou um gato é pior do que atropelar um coelho, atropelar um coelho é pior do que atropelar um pássaro, atropelar um pássaro é pior do que atropelar uma lagartixa. E se formos para o reino dos insectos, então, é-nos tudo indiferente: qualquer viagem na A6 no início do Verão é um verdadeiro holocausto de insectos - são literalmente milhares os mosquitos e afins que esmagamos pelo caminho.

A questão é: como explicar isto a uma menina de nove anos, sem que estejamos a fazer um trabalho de insensibilização? Não há forma. Estará sempre subjacente o singelo facto de que eu não fiquei tão triste quanto ela porque a vida já me ensinou a lidar melhor com a perda. Mas isso não é resposta que se dê. Eu não posso dizer à Carolina: "Olha, fiquei menos triste do que tu porque já aprendi a não ser tão sensível. Sente menos, se faz favor." Seria uma treta de uma resposta.

Então, o que aconteceu foi ela ter ficado perturbada pela minha falta de perturbação, e eu ter ficado perturbadíssimo por ela ter ficado perturbada pela minha falta de perturbação. Crescer é endurecer, como é óbvio, mas esse é essencialmente um processo que parte do interior de cada um, e quando alguém nos confronta com as nossas armaduras, aquelas protecções que já fazem tão parte de nós que nem sequer damos por elas, somos igualmente confrontados com a questão da perda da inocência. E, de uma estranha maneira, foi essa perda que eu vi reflectida no olhar desapontado da minha filha. Estou certo que ela cresceu um pouco naquele momento, por causa da dureza do meu coração. E embora isso seja provavelmente necessário, não deixa de ser triste.

Três dias depois ainda continua a ressoar na minha cabeça o que ela me quis dizer, e que de certa forma disse mesmo: "Porque é que a morte daquele passarinho não te atingiu no fundo do teu coração?" E embora eu saiba que é bom para mim, e para a minha felicidade interior, que a morte de um passarinho não me atinja no fundo do meu coração, e que essa morte fique apenas como uma tristeza superficial, que passa ao fim de dois minutos, tal não me tem dado grande consolo. Infelizmente, para ser boa, essa insensibilidade não pode ser consciente. Se for consciente, já não é boa. E a Carolina escarrapachou-ma em frente do nariz.

Nós gostamos de nos convencer que educar os nossos filhos é apurar-lhes a sensibilidade, torná-los mais atentos aos outros, ao mundo e à natureza: "diz olá ao vizinho", "sê boa para os teus manos", "não deites lixo para o chão", "vê como este quadro é bonito", "repara no que diz esta canção". Mas, afinal, também há um outro movimento, menos perceptível, mas provavelmente também necessário: é ensinar-lhes a insensibilidade, saber onde devem investir e desinvestir os sentimentos, porque essa é a única forma de atravessar a vida sem se ser atropelado a toda hora.

Portanto, acho que sim, que se calhar aquela foi uma lição muito útil para a Carolina. Mas, então, como se explica que eu esteja tão arrependido de lha ter dado?

Para a Ana Rute e para o Tiago 

Para o António e para a Margarida

terça-feira, 16 de julho de 2013

A vespa

Ou muito me engano ou o meu filho Gui vai ser o chanfrado da família. Eles são todos muito diferentes uns dos outros, mas a Carolina, o Tomás ou até a Rita têm uma boa dose de previsibilidade, é relativamente fácil perceber a cabeça deles. Já o Gui é sempre um poço de surpresas.

Esta noite acordou várias vezes porque tinha "uma vespa no quarto". Explicámos-lhe pacientemente, primeiro a mãe e depois eu, que não podia ser uma vespa, que era de certeza uma melga ou um mosquito irritante, daqueles que nos zombem aos ouvidos mas que são quase impossíveis de apanhar no escuro. Que não. Era definitivamente uma vespa. E ao fim de inúmeras vespas alegadamente a fazerem voo picado sobre a sua tola, nós rendemo-nos e dissemos-lhe: "Ok, Gui, anda para a cama dos papás, que lá não há vespas." E ele foi? Nope. Nein. Niet. Nada disso. Recusou-se terminantemente: "Eu não quero ir para a cama dos papás! Eu não quero ir para a cama dos papás!"

E não foi mesmo. Para além de ser a única criança a ser atacada por vespas no escuro e às quatro da manhã, o Gui é a única criança que não gosta de ir para a cama dos pais. É um pequeno mistério, este nosso filho n.º 3. E, como todos os mistérios, mete um bocadinho de medo.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Com uma perna às costas

Eis o meu texto de ontem para a revista do CM:

As capacidades do ser humano para aguentar, perseverar e adaptar-se são, de facto, extraordinárias. Quando comecei a ser pai, a grande pancada físico-psicológica ocorreu do primeiro para o segundo filho. O primeiro leva-nos uma grande fatia do nosso tempo, como é óbvio, mas foi com o segundo que tive subitamente o negro presságio de que não iria sobrar nada para mim. O Tomás nasceu e poucas semanas depois eu já andava aos caídos, sentindo que se tinha definitivamente acabado aquela vida que antes tinha e tanto apreciava. Foi um período realmente complicado.

Passaram seis anos e no último fim-de-semana despachei a filha nº1 e o filho nº2 para o Alentejo, para aproveitarem estes maravilhosos dias de Verão na quinta dos avós. Resultado: estou em casa com 50% dos filhos. São dois, como quando nasceu o Tomás, e até são a parte mais trabalhosa, porque mais bebé, da minha prole. Mas sabem o que é que está a acontecer? Parece que estou de férias. A sério. Curiosamente, até tenho tido uns dias profissionalmente tramados, com preocupações no trabalho e correrias várias, mas a minha cabeça está muito mais levezinha, apesar de continuar a ter de tomar conta de uma menina de 10 meses e de um menino de cinco anos.

Ou seja, os mesmos dois filhos (enfim, eram outros, mas eram dois na mesma) que há seis anos pareciam ser um peso insuportável em cima dos meus ombros, hoje gerem-se e cuidam-se cá em casa como se estivéssemos a mastigar pastilha elástica. Esta forma como tudo realmente muda quando alteramos a perspectiva, como nos vamos moldando à nossa vida à medida que o tempo passa, é um grande mistério, mas não tenho dúvidas de que seja o maior poder de entre todos os poderes dos seres humanos, uma coisa mesmo à Super-Homem: nada bate a nossa incrível e extraordinária adaptabilidade às circunstâncias que nos rodeiam.

Quando pressionados, chegamos a sítios que nunca imaginaríamos possíveis, vamos buscar forças e resiliência a lugares que pensávamos vazios, e depois, quando o elástico que se ia partir afinal não se parte e volta à posição inicial, tudo aquilo que anos atrás nos pesava torna-se subitamente leve. É assim, segundo leio, nos tremendos esforços exigidos pelo desporto de alta competição. Mas também é assim na nossa vida – que, bem vistas as coisas, é a mais alta competição que todos nós temos de enfrentar.



Ilustração de José Carlos Fernandes

domingo, 14 de julho de 2013

Se você está feliz bata palmas

Isto já tem dois anos, mas eu só descobri agora - e nunca é tarde para divulgar as grandes ideias. O clap-off bra nasceu num site maluco que ajuda a construir com as suas próprias mãos as coisas mais bizarras (e ponham bizarro nisso), uma espécie de D-Mail de trazer por casa, artesanal e ainda mais alucinado do que o D-Mail propriamente dito. O vídeo é este:


Para os interessados, que nalgum momento das suas vidas já sonharam com tal objecto (ou seja, todos os homens heterossexuais), as instruções para o construir podem encontrar-se aqui, mas infelizmente não são nada fáceis. Convém também notar que não é boa ideia levá-lo para os concertos de Verão.

sábado, 13 de julho de 2013

Agora põe isso na boca de um adulto 6

A ideia de colocar dois adultos a reinterpretarem conversas que um pai teve com uma filha, da qual falei aqui em Maio e aqui em Junho, já vai no sexto episódio, como podem ver:


Nem todos são igualmente bons (são fáceis de encontrar no YouTube), mas achei este bastante divertido, porque aborda um assunto também muito sensível cá em casa: as etiquetas nas roupas, uma alergia transversal, que começa no pai e acaba nos filhos.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Dicionário Guisês-Português #2

Ganhar por humanidade criançola: Segundo o Gui, significa que todos os irmãos se puseram de acordo sobre determinado assunto, um momento raro, que na língua portuguesa é conhecido como "aprovado por unanimidade".

Dicionário Guisês-Português #1

Andar em família indiana: Segundo o Gui, significa pais e filhos a circularem juntos e em fila pelo passeio, praticando aquilo que em português é conhecido por "andar em fila indiana".

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Para a Teresa, com amor

Aqui está um texto que saiu hoje no Público, e que eu dedico à minha excelentíssima esposa, com muito amor (vocês sabem quem é que cá em casa quer impor "uma rotina mais apertada", não sabem?):

As crianças que durante a semana não conseguem manter uma rotina que passe por irem para a cama sempre às mesmas horas poderão ficar com o cérebro afectado, nomeadamente com mais dificuldade em assimilar as novas informações.

As conclusões são de uma equipa de investigadores da University College London e acabam de ser publicadas no Journal of Epidemiology and Community Health. De acordo com os cientistas, quando não há uma rotina do sono, ainda assim, os efeitos negativos são mais sentidos pelas raparigas do que pelos rapazes, explica o diário britânico The Guardian.

O estudo procurou perceber os efeitos de horários de sono irregulares no desenvolvimento cerebral em crianças ainda pequenas. Para isso, os investigadores utilizaram informações do UK Millennium Cohort Study, uma base de dados que contém informações de várias áreas. Os investigadores escolheram uma amostra de adolescentes cujos dados eram acompanhados desde a infância e compararam os dados relativos ao ciclo de sono com os resultados em alguns testes.

O trabalho contou com a participação dos pais. Os que responderam que os seus filhos iam para a cama “sempre” ou “quase sempre” às mesmas horas foram colocados no grupo dos regulares e os que responderam “algumas vezes” ou nunca” foram para os irregulares.

A equipa, liderada por Amanda Sacker, olhou em especial para as informações das crianças quando estavam casa dos três anos de idade e percebeu que tanto os rapazes como as raparigas que tinham irregularidades no sono apresentavam mais tarde dificuldades em áreas como a leitura, a matemática ou exercícios que implicassem abstracção. O problema afectava mais as raparigas, tanto aos três anos como mais tarde, aos cinco e aos sete anos.

Pelo contrário, as crianças cujos pais mantinham uma rotina mais apertada tinham mais facilidade em apreender a informação de situações novas. Além disso, de acordo com o estudo, aparentemente quanto mais tempo perdurar a irregularidade maiores vão ser os efeitos no futuro. Um dado curioso é que a hora a que as crianças se deitam parece não ter influência, desde que seja sempre a mesma, ainda que seja mais tarde.

“Os três anos parecem ser a idade onde se vê um efeito mais claro” da privação de sono, disse Amanda Sacker ao The Guardian, explicando que contrariar o relógio do corpo humano tem implicações directas na aprendizagem. “Se uma criança tiver irregularidades na hora de ir para a cama numa idade prematura, não estará a sintetizar toda a informação à sua volta, e terão o trabalho mais dificultado em fazê-lo quando fores mais velhas”, acrescentou. “Dormir é o preço que pagamos pela plasticidade [do cérebro] no dia anterior e o investimento necessário para permitir aprender com a cabeça fresca no dia seguinte”, escrevem os autores, citados pelo mesmo jornal.


Isso era dantes

Manifestamente, a minha excelentíssima esposa está mal informada. Isto era dantes. A partir do momento em que ela começou a trazer paletes de Häagen-Dazs do supermercado, o que eu passei a fazer foi degustar tudo até ao fim e depois esconder a embalagem no fundo do caixote do lixo. Assim ela não dá por nada.

Tal pai... tal filha

Chegam visitas inesperadas, eu estou a contar com gelado para sobremesa e...


Bem limpa e arrumada a caixa, mas... vazia. A única coisa que me faz distinguir neste achado a assinatura da filha, em vez da do pai, é que o pai geralmente deixa um nadinha de Häagen-Dazs no fundo, para poder dizer que não o comeu todo.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Isto provoca-lhe tristeza ou felicidade?

Queria aqui fazer mais uma vénia ao sempre grande Malomil, através do qual descobri a história das irmãs Brown, que se deixam fotografar há 37 anos consecutivos, sempre pela mesma ordem. Da esquerda para a direita: Heather, Mimi, Bebe e Laurie. Aquilo que o Malomil não explica é a qualidade das fotografias a preto e branco, demasiado boas para serem apenas amadoras. Fui pesquisar e não são amadoras, de facto: elas foram tiradas pelo fotógrafo Nicholas Nixon, marido de Bebe, que iniciou o ritual em 1975 e que se propõe continuá-lo para sempre, até as irmãs serem apenas três, duas, uma (ele brinca, neste texto do Huffington Post, que falta ainda pensar no que fazer se o fotógrafo morrer primeiro).

A coisa é tão séria que até já foi alvo de duas exposições no MoMa, a primeira por altura do 25.º aniversário da iniciativa, e a segunda pelos 33 anos. Existem inclusive dois catálogos, o último dos quais eu encontrei à venda na Amazon inglesa pela módica quantia de... 250 libras - mas que se calhar até não é um mau investimento, tendo em conta os preços praticados na Amazon americana, onde a edição de 2002 está a 600 dólares e a de 2008 está a quase... 4000 dólares! Bom, mas um dos encantos da blogosfera é podermos mostrar tudo isto inteiramente à borla, e já com as fotografias actualizadas até 2012 (encontrei os últimos dois anos nesta galeria).

Devo dizer que estou tentadíssimo a iniciar o mesmo ritual com os meus quatro filhos, talvez quando a Rita celebrar o seu primeiro aniversário. Que é uma maneira de dizer: "Era boa ideia a Teresa iniciar este ritual com os nossos quatro filhos, talvez quando a Rita celebrar o seu primeiro aniversário." Os miúdos iriam com certeza adorar ter uma coisa destas quando fossem mais velhos.

Como pequeno apontamento filosófico-existencial, que fica sempre bem em qualquer texto, deixo aqui esta questão, para reflexão dos caríssimos leitores: esta sequência de fotos causa-lhe, em primeiro lugar, alegria ou tristeza? Diria que a resposta a essa pergunta define muito daquilo que nós somos. Eis as maravilhosas fotos das irmãs Brown:

 1975

 1976

1977

 1978

1979

 1980

 1981

 1982

 1983

 1984

 1985

 1986

 1987

 1988

1989

 1990

 1991

 1992

 1993

 1994

 1995

 1996

 1997

 1998

1999

 2000

 2001

 2002

 2003

 2004

 2005

2006

 2007

 2008

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 2011

2012