quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Faz mal bater às crianças? Parte IV

Bom, pelos vistos não há muitos juristas a frequentar este blogue, ou estão entretidos com outras coisas mais importantes, como a reforma da Justiça em Portugal (e se assim for, concentrem-se nisso). A este meu desafio só respondeu o Rui Fachada (espreitem os comentários), de uma forma moderada e que me parece bastante razoável. Continuo à espera dos argumentos jurídicos de quem defende que em Portugal enfiar uma palmada correctiva no rabo de um puto é ilegal.

Em 2007 houve alterações ao artigo 152 do Código Penal, respeitante à violência doméstica (onde os filhos estão incluídos), que passou a ser definida como o acto de infligir "de modo reiterado ou não", "maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais". É verdade que uma leitura fundamentalista deste artigo pode considerar que uma nalgada é inflingir de modo não reiterado um mau trato físico a um descendente em 1.º grau, mas aí eu diria que estamos no domínio do delírio jurídico, tendo em conta aquilo que é comummente entendido como "violência doméstica".

É também verdade que a Organização Mundial contra a Tortura (chiça...) apresentou queixa contra Portugal no âmbito do Conselho Europeu em 2003 e em 2006, defendendo que a legislação portuguesa não estava conforme às regras da Carta Social Europeia Revista, que proibia quaisquer castigos corporais a crianças. Pelo que pude pesquisar aqui, foi inclusivamente entregue um estudo de acordo com o qual cerca de 80% dos pais e mães portugueses entendia ser legítimo dar bofetadas ou açoites nas crianças como forma de as educar. Para a Organização Mundial contra a Tortura (chiça...), parece que tais conclusões são sintomas da barbárie instalada.

Na queixa de 2003, o sentimento não foi partilhado pelas instâncias europeias, mas a queixa de 2006 foi considerada procedente, na medida em que foi acompanhada de um acórdão meio amalucado do Supremo Tribunal de Justiça que absolveu uma funcionária que usou violência sobre crianças com deficiência mental. O Supremo utilizou aqueles argumentos à macho lusitano da década de 50, do género dar lambadas só faz é bem e quem não as dá é que é mau pai. Tendo em que conta que se estava a falar de crianças deficientes e de uma funcionária de uma instituição, o argumento não tem pés nem cabeça.

Mas a jurisprudência portuguesa, felizmente, é mais equilibrada. Numa breve pesquisa por acórdãos encontrei juristas que defendem que "a finalidade educativa pode justificar uma ou outra leve ofensa corporal simples" (Taipa de Carvalho), que "de acordo com o ponto de vista maioritário a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção" (Paula Ribeiro de Faria) e até que "os pais detêm o poder-dever de corrigir moderadamente os filhos" (acórdão de 10 de Outubro de 1995).

Esta é a tradição portuguesa, que me parece muito salutar, e que fazendo as contas às reacções dos leitores deste blogue ainda está em clara maioria.

Sim, na Suécia os castigos corporais são proibidos desde 1979, e no Brasil anda em efusiva discussão a chamada "Lei da Palmada" (os brasileiros são sempre óptimos a dar nomes às coisas). O debate é obviamente fascinante, mas há um argumento liberal ao qual eu sou muito sensível, para mais no Portugal de 2013: o Estado e as leis não têm de estar com o nariz enfiado nas famílias e na educação dos filhos, sempre de dedinho em riste a querer legislar sobre o tamanho do pepino e a força de uma palmada no rabo.

Mais: num país onde a violência doméstica é uma tragédia tantas vezes silenciada, a confusão entre uma palmada no rabo de uma criança e a agressão física a uma mulher só vem confundir linhas que deveriam ser totalmente claras e estar absolutamente demarcadas. Aí, sim, é brincar com coisas sérias. 

E quem confunde as duas coisas devia levar um bom tau-tau.   



16 comentários:

  1. Bom dia João :)

    Deixe-me apenas dizer-lhe (ainda que não seja preciso) que este tem sido um excelente debate e uma excelente troca de ideias e opiniões.
    A demonstração de que um blog não tem de ser um fait-divers, nem a exposição da vida como gostamos que os outros a vejam, mas que pode ser espaço de discussão saudável, mesmo que seja sobre temas sensíveis e (porque não dizê-lo?) polémicos.

    Um abraço,
    Ana Maria

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  2. Há uns tempos houve um documentário precisamente sobre um pai sueco de vários filhos que por lhes dar palmadas no rabo na sequência do que ele achava ser mau comportamento foi-lhe retirada a custódia dos filhos, que foram entregues a instituições. Eu não vi o dito documentário (foi-me contado) e não sei se haveria por ali outras razões para tal decisão. Aquilo que mais poderia chocar as "mentes latinas", onde as palmadas são, penso eu, geralmente espontâneas e na sequência de esgotamento de paciência, naquele caso as palmadas eram um ritual de absoluta frieza. O pai chamava as crianças, eles baixavam as calças e aí vai disto (palmada). Sem gritos, nem queixas e em silêncio e depois cada um ia à sua vida.
    Mesmo eu comentando isto com eventual falta de informação confesso que a descrição me perturbou muitíssimo. Por um lado, a frieza e ponderação com que o castigo era aplicado; por outro, a retirada dos filhos aos pais (seria só este o motivo, de facto??)

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  3. O tema é sensível, naturalmente, e perante tantas opiniões e morais, talvez daí tenha surgido a necessidade de legislar. Creio que há sempre forma de educar evitando recorrer à palmada, mas nem sempre a paciência é a melhor no momento. Obviamente, a palmada imediata para evitar que a criança se magoe ou magoe outros é eficiente - a tal teoria mau/punição, bom/recompensa e de que não me estou a lembrar agora o nome (só me lembro de uma cena com o Sheldon e a Penny do Big Bang Thory e sem palmadas :)) funciona sempre, digo eu, e como a palmada está mais à mão ... :), mas com certeza há outras formas. Contra mim falo, que também aplico uma palmada, mas arrependo-me logo de seguida ... "devias ter mais paciência, devias ter mais paciência".

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  4. O problema não é a palmada mas sim quando parar... numa altura em que a paciência se esgota, o controlo também é fácil de perder... e ainda, se a palmada cumpre o objetivo de educar, ou seja, o que queremos ensinar aos nossos filhos ao dar uma palmada, reformulando, o que é que eles aprendem?

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  5. Concordo com a Ana Maria, numa altura em que tanto se debate o a democracia e a ditadura, tem corrido muito bem, melhor que na assembleia da república. Ainda ninguém foi grandolado ;)
    E debater este tema é um excelente sinal.

    Sempre pensei que no Brasil se chamaria Lei da Lambada ;)

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  6. Fui aluna do Professor Taipa de Carvalho, da Professor Paula Ribeiro de Faria e li imenso Figueiredo Dias. A tese destes 3 autores é muito semelhante e é, ainda, a perspectiva maioritária: a ofensa à integridade física será justificada quando aplicada pelo detentor do poder paternal, com finalidade educativa e com intenção educativa, sempre que demonstre ser adequada a atingir esse fim e não viole princípios fundamentais de dignidade humana. É o chamado direito de correcção. Neste sentido, um castigo moderado com fim educativo e intenção educativa pode ser legítimo. Paula Ribeiro de Faria fala, então, de um juízo de adequação social que cria atipicidade da condita do educador, embora este juízo deva ter limites apertados e conformes aos direitos e dignidade das crianças. Destas teses resulta que são proibidos todos os castigos que não sejam adequados, proporcionais e necessários à finalidade educativa, pelo que termos de considerar um conjunto de factores (a intensidade do castigo, a gravidade e natureza do motivo, o local do corpo e o espaço onde é aplicado - público ou privado, com pessoas a assistir ou não -, a sua idade, constituição física e maturidade). De referir, ainda, que os castigos físicos para estes autores devem apenas ser utilizados em última ratio, ou seja, quando não exista outro meio capaz de atingir o fim educativo.

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  7. Porém, existe uma outra doutrina, defendida por Clara Sottomayor, também minha professora, que defenda a tipicidade dos castigos físicos em crianças. Para esta autora, tendo em conta a dificuldade em definir critérios para aferir o carácter moderado e socialmente adequado dos castigos, a tolerância social em relação a estes castigos "são potencialmente perigosas para as crianças, fazendo com que estas sejam o único grupo, na sociedade, que pode ser agredido, sem punição contra os autores da agressão". Clara Sottomayor entende que a atipicidade destes castigos perpetuam "uma imagem de inferioridade da infância, contrária à nova concepção do direito das crianças, imposta por normas internacionais que vinculam o Estado português a promover uma cultura de respeito pela criança". Na verdade, o legislador revogou do artigo 1884º do Código Civil de 1966 que consagrava o poder dos pais corrigirem moderadamente os filhos menores. Assim, esta doutrina remete-nos para o facto de a lei civil e a Constituição terem substituído esse direito de correcção pelo direito-dever de educação, pelo que os pais são legalmente obrigados a procurar meios educativos alternativos ao uso de castigos físicos e psíquicos. Clara Sottomayor refere que a aceitação de qualquer castigo moderadamente aplicado aos filhos "assenta numa ideia, culturalmente muito difundida, mas desmentida pelas ciências sociais e pela psicologia, de inferioridade da criança face ao adulto". Já será diferente, no entender desta autora, quando os pais utilizam a força física para proteger a criança contra si própria, por exemplo, porque se recusa a colocar o cinto de segurança no automóvel, coloca os dedos nas tomadas ou para evitar que caia de uma janela. contudo, nestes casos, a força física só será licitamente usada se não exceder a proporção exigida pela necessidade de afastar a criança do perigo. Clara Sottomayor defende a procura de meios de disciplina positivos e não violentos, que acabem com castigos corporais e humilhantes, já que a ausência destes não significa a inexistência de regras - para esta autora é possível a estipulação de regras na vida de uma família, assim como uma educação para a auto-responsabilidade, sem autoritarismo, num quadro de afectividade, "aprendendo, neste contexto, as crianças, com maior naturalidade e sucesso, a pensar nos outros e nas consequências das suas acções", acrescentando, ainda, que compreende "que esta posição possa ser considerada demasiado exigente para os pais. Mas penso que em matéria de direitos humanos não devemos ceder aos costumes ou à cultura da população".
    Quanto a mim, não sou mãe, mas a primeira doutrina, com todos os seus limites e respeitando-se todos aqueles princípios, parece-me aceitável.
    Se um castigo aplicado a um filho é crime ou não vai depender muito do aplicador da lei e da interpretação que faça dela e daquele que seja o seu entendimento. A Professora Clara Sottomayor, por exemplo, foi nomeada juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, em Setembro do ano passado.

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  8. Boa tarde,

    Tenho seguido atentamente este debate (e todo o blog no geral).
    Parece-me que o assunto está praticamente arrumado (com o the end que se esperava penso eu), de qualquer forma gostava de partilhar uma história que há uns meses alguém me contou.
    Uma senhora dos seus 60´s, mãe de 3 filhos, contava, na minha presença, que quando um dos filhos era bem pequenino tinha o péssimo hábito de, estando no penico, se levantar, virar o penico e remexer alegramente no que tinha feito, acabando a sujar-se todo, boca, cara, dedos, etc.
    A senhora dizia que tudo isto se passava numa questão de segundos e ocorreu com frequência suficiente para deixar toda a gente lá em casa preocupada.
    A estratégia adoptada começou por ralhar e vigiar todo o processo para o conseguir interromper.
    Certo dia, dizia ela, o marido, encarregue da vigília no momento, distrai-se com o jornal, e quando olhou para o filho, já o miudo estava mergulhado no penico e o penico dele. Perdeu a santa paciência e logo ali deu-lhe uns valentes açoites.
    Diz ela, que nunca mais repetiu a brincadeira. Hoje é um homem crescido e provavelmente nem se lembrará de tudo isto.
    Achei toda a situação deliciosa. Uns quantos açoites resolveram de forma simples o que uma bateria de psicólogos e psiquiatras iria complicar até à exaustão e nunca conseguir resolver (e eu sou psícóloga).

    Não consigo imaginar nada de mal ou condenável em toda esta actuação. Podiam ter gerido a coisa à base de ralhetes, e talvez até funcionasse, quem sabe. Resolveram com uns palmadas, parece-me bem na mesma. Mais do que isso são opiniões pessoais, que, como em tudo, cada um tem a sua. Não devemos, penso eu, daí tentar retirar uma verdade universal, até porque tal coisa não existe.

    Não existem receitas e lembro-me de algo que um pensador qualquer do campo da educação escreveu sobre isto (não me recordo quem, já foi há muito tempo): "antes eu tinha 100 teorias de como educar um filho e nenhum filho, hoje tenho cinco filhos adultos e nenhuma teoria"... a humildade também é uma coisa muito importante.

    Vou continuar a acompanhar o blog. Obrigada pela partilha.

    Cumps,
    Catarina

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    1. Essa história é "deliciosa", não fosse o que fosse o objecto da história...

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    2. A autora da frase "antes eu tinha 100 teorias de como educar um filho e nenhum filho, hoje tenho cinco filhos adultos e nenhuma teoria" foi a que escreveu o livro Tal so that children will listen and listen so that children will talk, um livro muito bom sobre educação.

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  9. Bem, eu sou advogada, leitora assídua do blog e comentei os posts sobre o tema, dizendo que também eu aplico umas palmadas aos meus filhos quando necessário (e não considero que esteja a cometer nenhum crime).
    Não apresentei quaisquer argumentos jurídicos sobre o tema porque, por um lado e como deixou antever o leitor que o fez, daria pano para mangas, e por outro, porque no direito nem tudo é preto e branco - é quase sempre tudo cinzento. Isto para dizer que cada caso é um caso, podendo ter resoluções diferentes à luz do mesmo Código Penal.
    Haverá seguramente casos de maus tratos físicos, quando os pais dão verdadeiros arraiais de tareia nos filhos e não propriamente uma ou duas palmadas correctivas no momento exacto. E depois há o contexto sócio-económico-cultural das pessoas envolvidas.
    Por exemplo, nos crimes de injúrias, isso conta imenso. Em classes sociais mais baixas é mais admissível o insulto, sendo menos admissível nas mais elevadas. E isto pode parecer discricionário, mas tem a ver com os contextos em que as situações ocorrem. No Norte, por exemplo, não é propriamente ofensivo utilizar palavrões, por isso é menos insultuoso chamá-los a alguém do que no Sul. Logo, uma mesma situação pode ser crime no Sul e não no Norte, porque desprovido da ofensa à honra no último. Este tipo de avaliações conta na apreciação que os tribunais fazem das situações.
    Como em tudo na vida, haverá que fazer uma aplicação do Código Penal com bom senso, o que torna a avaliação de cada caso muito mais subjectiva.
    Qual será a medida necessária e a medida proporcional admissível do castigo físico? Este é verdadeiramente o busílis da questão em termos técnico-jurídicos e que depende de um inúmero de factores.
    Espero ter contribuído para algum esclarecimento, sem entrar em pormenores técnicos.
    Margarida

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  10. Bom dia,
    Mais: num país onde a violência doméstica é uma tragédia tantas vezes silenciada, a confusão entre uma palmada no rabo de uma criança e a agressão física a uma mulher só vem confundir linhas que deveriam ser totalmente claras e estar absolutamente demarcadas. Aí, sim, é brincar com coisas sérias.
    A comparação que eu faço entre o castigo físico ao educarem os filhos e a violência doméstica nas mulheres é no sentido de que no MEU entender, agressão é agressão (ponto final!). Também poderia dar outros exemplos, mas quis evocar um exemplo em que em tempos também foi considerada justificável; aliás, as próprias figuras de autoridade achavam que "entre marido e mulher não se mete a colher" (infelizmente esta ideia ainda persiste em muitas pessoas, quiçá, em todos nós quando temos conhecimento de casos de violência doméstica e apesar de sabermos que é um crime público temos pudor em avançarmos com uma queixa) mas já estou a perder-me e a mudar de assunto. Hoje felizmente já tem a visão que a violência contra uma mulher é uma tragédia, mas se tivéssemos esta conversa há 50 ou 60 anos o seu discurso (e provavelmente até o meu, seria diferente) e acredito que se nos encontrarmos daqui a 60 ou 100 anos e voltássemos a ter esta conversa (sobre o castigo físico na educação de um(a) filho(a)) já me diria, provavelmente, que os pais que ainda educam os filhos à palmada é uma tragédia. Tudo isto tem a ver com o nosso quadro de valores e consciência (que leva tempo, gerações até, a mudar) e enquanto acharmos que são coisas diferentes é porque de facto falta-nos dar o salto nesta matéria. Enfim, para mim uma agressão é uma agressão, independentemente do contexto, independentemente dos protagonistas, independentemente das razões que levaram a esse ato e é sempre, sempre, ilegítimo.
    Quanto à sua última afirmação “E quem confunde as duas coisas devia levar um bom tau-tau.”, vá lá, tem mesmo de deixar de ver a violência como resposta para tudo!(brincadeirinha ;))

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    1. Atenção que a violência doméstica não é só contra a mulher. Há muito homem mal tratado por aí e é igualmente trágico. E eu sou mulher! Levando este exemplo mais longe, há por aí muitos filhos que maltratam os pais, ameaçando-os e fazendo-os reféns das suas próprias escolhas educacionais. Enfim, já são outros temas.

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  11. Eu cá (mãe de quatro), considero que uma palmadorra no rabo à antiga portuguesa nunca fez mal a ninguém. E tenho dito.

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  12. http://maegyver.blogs.sapo.pt/21119.html

    vale a pena ler.

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  13. Olá! Acho que ninguém acha mal uma palmada no rabo. A questão que se coloca é se damos a palmada (só) porque a criança merece ou porque naquele caso em concreto perdemos a paciencia para contornar a questão de outra forma.. Pergunto por experiência própria.

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