domingo, 21 de julho de 2013

Da desarrumação


Ilustração de José Carlos Fernandes

Eis a minha crónica de hoje no CM. E atenção: a ideia de vestir assim a minha esposa não foi minha, ok? A culpa deve ser totalmente atribuída ao ilustrador. Cá vai:

A minha excelentíssima esposa acha que vive cercada por uma quadrilha de desarrumados, da qual eu sou o cabecilha. Quer dizer: não é que ela ache que eu desarrume mais do que os quatro filhos, mas acha definitivamente que “não dou o exemplo”. Segundo ela, é devido à minha pérfida acção e à minha insistência em colonizar áreas indevidas da nossa casa – como a mesa da sala – com livros e jornais, que os miúdos tardam em assimilar o seu rigor teutónico em termos de organização caseira. Resultado: no seu entender, eu estou a alimentar quatro mini-furacões domésticos, que deixam nuvens de roupa e de brinquedos por onde passam.

Desconfio que não seja o único espécimen masculino a ser alvo de tão graves acusações: quase todas as mulheres acham que os seus maridos são uma lástima em matéria de arrumação. Mas eu diria, em defesa da classe, que falta bastante subtileza a esta análise. É que, na verdade, os homens não são mais desarrumados do que as mulheres. Simplesmente, ambos têm ideias muito distintas acerca do que “arrumado” quer dizer.

Por exemplo, a excelentíssima esposa embirra à brava que eu deixe meias usadas ao lado da cama. Ora, provisoriamente desarrumado não é desarrumado. Tal apenas acontece por razões logísticas: quando um gajo à noite despenca no colchão, ir à cozinha pôr as meias no sítio da roupa suja seria um acto de tortura, proibido pela Convenção de Genebra. Em bom rigor, é apenas uma desarrumação provisória e nocturna, parecendo-me do mais elementar bom-senso suspender o conceito de desarrumação entre a meia-noite e as oito da manhã.

Mas o pior não é isso. O pior é que as super-arrumadas mulheres são extremamente selectivas quanto ao seu conceito de arrumação. Sendo altamente exigentes em relação a roupa, decoração da casa ou utensílios de cozinha, elas estão longe de estender a exigência a coisas como, por exemplo, as bagageiras dos automóveis. A sala estar um bocado desarrumada é trágico. Mas o facto da parte de trás do nosso carro parecer um armazém dos Companheiros de Emaús já é natural. Meias usadas no chão é horrível. Mas a acumulação de discos de música, filmes ou jogos fora das respectivas caixas torna-se aceitável. Ora, isto não pode ser. A mitologia do homem desarrumado tem de ser combatida. Nós não desarrumamos nem mais, nem menos, do que vocês, minhas senhoras. Simplesmente, desarrumamos diferente.

11 comentários:

  1. Acabei de ler este texto com o meu marido e é mesmo isto!!! Fartamo-nos de rir. Mas eu perdoo as meias ao lado da cama, já ele critica-me sempre pelo carro desarrumado!!

    ResponderEliminar
  2. Genericamente, o rigor e exigencia na arrumação ordem e limpeza são comuns aos dois géneros. O feminino manifesta-se no lar, o masculino no automóvel. Nunca irei conseguir entender a necessidade do paninho de camurça para fazer brilhar as jantes. Também já desisti de querer que algum homem entenda a importância de deixar a tampa da retrete fechada.

    ResponderEliminar
  3. Que frase soberba... "Mas o facto da parte de trás do nosso carro parecer um armazém dos Companheiros de Emaús já é natural."

    ResponderEliminar
  4. Obrigada pela gargalhada. Gostei especialmente - bem, não sei se gostei - da parte do "desarrumamos diferente".

    ResponderEliminar
  5. Ai ai ai revi a nossa casa nesse texto. A casa e o carro! O marido até já diz "qualquer dia tenho que comprar um carro SÓ para mim"... Isso e "quando tu arrumas nunca sei onde estão as coisas". Geralmente estão no sítio :)
    Parabéns, João. Tal e qual.

    ResponderEliminar
  6. Pois o meu comentário vai no sentido da minha experiência, que é oposta à descrita. Eu não desarrumo nada no carro (mas como não o uso como condutora, é normal que assim seja), por isso o meu marido não tem razão de queixa nesse campo, mas, em casa, a desarrumada sou eu! Ele é exemplarmente arrumado!

    ResponderEliminar
  7. Felizes, felizes, felizes. Vocês são TÃO felizes, carago...

    ResponderEliminar
  8. Acho que não diferem só no conceito de arrumação mas também no de provisório.

    ResponderEliminar
  9. Se me permite, deixo aqui uma mini-observação sobre o tema q escrevi no meu blogue aqui há uns tempos:

    "As coisas cá por casa arrumam-se sozinhas! Convenhamos a partir de um exemplo, se alguém precisa, suponhamos, de uma tesoura, a pessoa que precisa da tesoura vai à caixa das tesouras e tira uma, depois, na nossa casa, não há mais preocupações, a tesoura tem pernas e arruma-se sozinha!

    A minha irmã diz que esta necessidade de ter sempre as coisas organizadas e arrumadas cá em casa se deve à minha falta de inteligência, diz a perita, que uma pessoa inteligente consegue mover-se agilmente no meio da confusão, memorizando onde está cada objecto, não necessitando assim de ter as coisas arrumadas em sítios pré-determinados. Uma pessoa inteligente não precisa de ter uma caixa para as canetas, uma pasta com facturas, ou uma gaveta para os cabos. Uma pessoa inteligente só precisa de uma mesa na sala.

    Eu sou casada com um génio!"


    ;) que ninguém ponha em causa a sua genialidade!


    www.meuqueridodiario.pt

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sobre este assunto gosto sempre de relembrar este poema:
      CASA ARRUMADA - Carlos Drummond de Andrade*****

      ****

      A vida é muito mais do que isso...
      "A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida
      está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência
      egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos
      também a felicidade."

      Casa arrumada é assim:****

      Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa
      entrada de luz.
      Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um
      cenário de novela.
      Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os
      móveis, afofando as almofadas...
      Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:
      Aqui tem vida...
      Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras
      e os enfeites brincam de trocar de lugar.
      Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições
      fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
      Sofá sem mancha?
      Tapete sem fio puxado?
      Mesa sem marca de copo?
      Tá na cara que é casa sem festa.
      E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
      Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
      Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
      passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
      Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
      A que está sempre pronta pros amigos, filhos...
      Netos, pros vizinhos...
      E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca
      ou namora a qualquer hora do dia.
      Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.
      Arrume a sua casa todos os dias...
      Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...
      E reconhecer nela o seu lugar.****

      ****

      Carlos Drummond de Andrade****

      Eliminar
  10. Havia a desarrumação provisória, depois veio a desarrumação permanente e definitiva e agora, assim de surpresa, surge a desarrumação poética/romântica ....
    Há mais?

    ResponderEliminar