quarta-feira, 17 de julho de 2013

Carolina e o passarinho


No último domingo fomos passar o dia ao Badoca Park, aproveitando o facto de o tempo estar fresco. Na viagem de regresso, numa zona da A1 em que a autoestrada se eleva e fica no mesmo plano da copa das árvores que estão ao lado, um pássaro desconhecedor das regras da circulação automóvel saiu a voar em direcção à autoestrada e veio embater no pára-brisas.

Não aconteceu nada ao vidro do carro. Deveria ser um pardalito que, àquela velocidade, foi directamente para o céu das aves. Mas se não aconteceu nada ao carro, aconteceu alguma coisa à Carolina, que assistiu à cena e à pancada no pára-brisas. Ela ficou perturbadíssima com a morte do passarinho, meio lacrimejante e com a voz embargada. Por ela, eu teria travado a fundo em plena autoestrada e feito marcha-atrás para ver se ele ainda estaria vivo.

Mas, no fundo, o que mais a perturbou não foi bem isso, não foi a morte do pássaro só por si - foi eu não ter ficado tão perturbado com o que aconteceu quanto ela. Foi eu não estar a sentir o que ela estava a sentir. Claramente, a Carolina ficou a pensar para si própria: "porque é que o meu papá não está tão triste quanto eu?". E perguntou-me isso mesmo: "Papá, não estás triste?"

Disse-lhe que sim, que estava triste, mas que aquelas coisas acontecem. Tentei explicar-lhe que àquela velocidade o passarinho não tinha hipóteses de sobreviver, que o papá não tinha tido tempo de reagir. Contei-lhe também que não era a primeira vez que me acontecia, e que quem conduz tantos quilómetros como o papá dificilmente não terá já atropelado alguma coisa. Certa vez até fiquei sem a parte da frente do meu velhinho Fiat Punto ao atropelar um cão enorme ao pé de Abrantes. Foi horrível.

Mas, como explicação, tudo isto é fajuto. A verdade é que não há como ultrapassar a nossa hierarquia de sensibilidade em relação ao reino animal: atropelar um cão ou um gato é pior do que atropelar um coelho, atropelar um coelho é pior do que atropelar um pássaro, atropelar um pássaro é pior do que atropelar uma lagartixa. E se formos para o reino dos insectos, então, é-nos tudo indiferente: qualquer viagem na A6 no início do Verão é um verdadeiro holocausto de insectos - são literalmente milhares os mosquitos e afins que esmagamos pelo caminho.

A questão é: como explicar isto a uma menina de nove anos, sem que estejamos a fazer um trabalho de insensibilização? Não há forma. Estará sempre subjacente o singelo facto de que eu não fiquei tão triste quanto ela porque a vida já me ensinou a lidar melhor com a perda. Mas isso não é resposta que se dê. Eu não posso dizer à Carolina: "Olha, fiquei menos triste do que tu porque já aprendi a não ser tão sensível. Sente menos, se faz favor." Seria uma treta de uma resposta.

Então, o que aconteceu foi ela ter ficado perturbada pela minha falta de perturbação, e eu ter ficado perturbadíssimo por ela ter ficado perturbada pela minha falta de perturbação. Crescer é endurecer, como é óbvio, mas esse é essencialmente um processo que parte do interior de cada um, e quando alguém nos confronta com as nossas armaduras, aquelas protecções que já fazem tão parte de nós que nem sequer damos por elas, somos igualmente confrontados com a questão da perda da inocência. E, de uma estranha maneira, foi essa perda que eu vi reflectida no olhar desapontado da minha filha. Estou certo que ela cresceu um pouco naquele momento, por causa da dureza do meu coração. E embora isso seja provavelmente necessário, não deixa de ser triste.

Três dias depois ainda continua a ressoar na minha cabeça o que ela me quis dizer, e que de certa forma disse mesmo: "Porque é que a morte daquele passarinho não te atingiu no fundo do teu coração?" E embora eu saiba que é bom para mim, e para a minha felicidade interior, que a morte de um passarinho não me atinja no fundo do meu coração, e que essa morte fique apenas como uma tristeza superficial, que passa ao fim de dois minutos, tal não me tem dado grande consolo. Infelizmente, para ser boa, essa insensibilidade não pode ser consciente. Se for consciente, já não é boa. E a Carolina escarrapachou-ma em frente do nariz.

Nós gostamos de nos convencer que educar os nossos filhos é apurar-lhes a sensibilidade, torná-los mais atentos aos outros, ao mundo e à natureza: "diz olá ao vizinho", "sê boa para os teus manos", "não deites lixo para o chão", "vê como este quadro é bonito", "repara no que diz esta canção". Mas, afinal, também há um outro movimento, menos perceptível, mas provavelmente também necessário: é ensinar-lhes a insensibilidade, saber onde devem investir e desinvestir os sentimentos, porque essa é a única forma de atravessar a vida sem se ser atropelado a toda hora.

Portanto, acho que sim, que se calhar aquela foi uma lição muito útil para a Carolina. Mas, então, como se explica que eu esteja tão arrependido de lha ter dado?

Para a Ana Rute e para o Tiago 

Para o António e para a Margarida

13 comentários:

  1. Respondendo à questão eu diria que, contrariamente ao que muitos julgam, as carapaças que vamos criando para suportar os embates da vida não nos tornam insensíveis, apenas mais resistentes á dor

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  2. A morte é sempre um assunto difícil de explicar às crianças. "Que faz parte da vida" não é, na nossa cultura, uma explicação suficiente...
    Cá por casa, estamos há dois dias a tentar digerir a violenta morte (um acidente de moto à porta de casa!) do pai de um colega de turma do Tommy (9 anos). Era uma pessoa bastante próxima, porque a turma está junta desde o berço e os meninos passam a vida em casa uns dos outros. A escola tem feito um excelente trabalho com as crianças, mas a grande tarefa será obviamente dos pais.
    É daquelas situações que estão no topo da "nossa hierarquia de sensibilidades" e não dá para relativizar. Sobretudo, porque nestas idades, a ideia que eles têm da morte é que acontece quando as pessoas são velhinhas ou estão muito doentes e não a "pais" de 38 anos saudáveis.
    O Tommy não é muito de falar :(, mas ontem, no carro, fez 3 perguntas intercaladas com longas pausas:
    "Já sabes o que aconteceu ao pai do M?"; "Foi acidente de mota, não foi?"; "Que idade tinha o F?"
    Ontem deitou-se muito tarde, por isso adormeceu logo, sem ter tempo para grandes inquietações. Mas estou à espera, a todo o momento, que ele relacione esta situação com o facto de o pai andar todos os dias de mota... se é que não relacionou já e não exteriorizou!
    É que a mim a ideia atormenta-me e supostamente eu sou crescida e já ganhei as armaduras que a vida me foi dando!!

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  3. "saber onde devem investir e desinvestir os sentimentos" - é isso mesmo!

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  4. ...porque nem todos os aspectos do crescimento são simpáticos. Também (quase) todos nós devemos ter passado pela experiência de termos brincado com um animal que algumas horas depois estava morto e cozinhado no nosso prato. E nessa altura foi muito estranho. Mas efectivamente eles caem-nos no prato todos os dias...

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  5. eu tenho 32 anos e teria a mesma reacção da Carolina. Sou completamente irracional no que toca mortes de quaisquer seres que considere indefesos. Creio que serei sempre assim. mas não sou infeliz nem acho que esteja certa ou errada, tal como o João não será infeliz, certo ou errado, por não lhe custar a morte do passarinho. E, acredito, a Carolina também será muito feliz e equilibrada porque está a fazer o percurso dela acompanhada por pais atentos que mostram várias maneiras de ver a mesma realidade.

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  6. Eu sou uma Carolina em ponto 35 anos ;)

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  7. Que texto maravilhoso. Fiquei com lágrimas nos olhos. É tudo tão verdade.

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  8. É verdade... Identifico-me com o que escreveu também cada vez que olho para a minha filha de ano e meio e a vejo a rir à gargalhada de uma forma inocente como eu já não sou capaz de fazer há décadas. Custa-me pensar que um dia ela irá perder essa forma inocente de rir.
    É difícil... E aquilo que também me custa é pensar naquilo que já sofri para poder atingir o ponto de insensibilidade que me permite viver sem estar sempre com dor, e portanto de uma forma mais confortável dentro de uma armadura. E pensar que a minha filha ainda terá esse percurso tudo para fazer, essa dor toda para suportar, essa inocência toda para perder.
    Crescer e acompanhar o crescimento também é isto...
    Obrigado por este texto.

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  9. Faz agora 7 dias que matei o primeiro pássaro enquanto conduzia, chorei por ele... ainda me atormenta. Tenho 27 anos

    T.L.

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  10. Tenho 29 anos e continuo uma Carolina. (Nota: e espero, neste campo, não mudar nunca.)

    "Por ela, eu teria travado a fundo em plena autoestrada e feito marcha-atrás para ver se ele ainda estaria vivo." Não seria preciso travar a fundo; bastava travar. Com as devidas precauções (colete reflector incluído) eu iria ver do passarinho, sim. Como OBVIAMENTE iria ver de um coelho, um cão ou um gato. O ficar a agonizar no alcatrão é tortura que hei-de sempre evitar ao máximo infligir a qualquer animal do mundo.

    Parabéns pelo blogue delicioso.

    Filipa

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  11. Fantástico texto e melhor ainda o momento "família", tão duro, quanto necessário.
    Parabéns!

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