Há uns dias a Teresa pediu-me para ir falar com o Tomás:
- “Ele não quer vestir as calças do fato de treino. Acho que é por causa das joelheiras dos Angry Birds que lhe pusemos. Foi ele que as escolheu, mas agora diz que não as quer usar. Deve estar com vergonha.”
O Tomás é um futebolista destemido que rasga um par de calças de fato de treino a cada 15 dias, mas aquilo que o preocupava naquele momento não era os gastos desproporcionados na costureira. Ele estava (outra vez) envergonhado. Cabeça baixa, olhos no chão, respostas monossilábicas. Fui eu que tive de completar as suas frases, extraindo-lhe a confissão a saca-rolhas. Sim, os amigos do futebol tinham começado a gozar com ele por ter uma personagem dos Angry Birds em cada joelho. Sim, ele sabia que tinha sido ele a escolher as joelheiras. Mas não, não queria ser gozado outra vez. E já que estava com a mão na massa quanto a queixas de guarda-roupa, aproveitou para criticar alguma da sua roupa interior com ursinhos, que também era alvo de comentários jocosos no recreio da escola.
Se a Teresa estava à espera que eu pusesse a minha voz de mau e começasse a pregar a favor da acção afirmativa no recinto escolar, enfiando lá pelo meio uma nota de rodapé sobre a necessidade de impor a própria individualidade sem receio do olhar dos outros, então ela escolheu o pior gajo do mundo para o fazer. Não é que eu não acredite nisso – acredito, gostava que fosse assim, e até ensaiei um rascunho desse discurso. Expliquei ao Tomás que os Angry Birds eram um jogo de gente grande, que não tinha razões para ter vergonha. Mas ainda o intróito ia a meio e já eu me estava a sentir brutalmente hipócrita. E hipócrita porquê? Hipócrita porque o Tomás é demasiado parecido comigo e eu passei por tudo aquilo que ele está a passar agora, com a diferença de que na altura os Angry Birds ainda não tinham sido inventados. Tenho vivíssimo na minha memória um dia de Inverno em que levei para a escola um guarda-chuva com vários padrões de cinza – não imaginam o que eu fui gozado só pelo facto de o guarda-chuva não ser todo preto. Nunca mais me atrevi a pegar-lhe. As crianças são muito cruéis e há uma altura certa para nos libertarmos do olhar dos outros. Essa altura, para o Tomás, ainda não chegou. A Teresa estendeu-me umas novas calças de fato de treino, e eu vesti-lhas, tão contente quanto ele.
A ilustração, como sempre, é do José Carlos Fernandes, que desta vez apostou numa versão imberbe da minha pessoa.
Podes apagar (ou não aprovar) este comentário.
ResponderEliminar"Mas ainda o intróito e a meio" -> "Mas ainda o intróito ia a meio"
Gostei do artigo e do guarda-chuva, já agora ;)
Obrigado. Já corrigi.
EliminarO meu filho no fim de semana pediu-me para não levar uma camisa à festa de anos do amigo...comecei com o tal discurso que a Teresa queria (penso que é característico das mães)e ele disse-me simplesmente (tem oito anos) "Mãe, queres que eu seja humilhado?"
ResponderEliminarDeixei-o levar a roupa que ele escolheu!
Adoro estes textos!
ResponderEliminarAs crianças são, realmente, muito cruéis. Mas acho que todos nós passamos por essa fase, tanto a de sermos gozados e descriminados, como pela parte de gozarmos e metermos de parte alguém por algum motivo estúpido quando tínhamos 8 anos! Lembro-me de uma vez no recreio juntar-me ao grupinho para brincar e uma miúda dizer "Não brincas connosco porque não tens pai".. Isto na altura em que o meu pai tinha falecido, e então eu já não era igual aos outros! Mas pronto, são fases pelas quais já todos nós passamos! Crianças, tão amáveis e tão cruéis!
ResponderEliminar