Ilustração de José Carlos Fernandes
Eis o meu texto de ontem na revista do CM, um bocadinho mais sério do que é costume:
A sociedade, as boas maneiras e a consciência judaico-cristã dizem-nos assim: o tempo que dedicas à tua família e aos outros é bondade e altruísmo; o tempo que dedicas a ti próprio e à satisfação dos teus interesses pessoais é egoísmo e falta de generosidade. “Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos”, lê-se no evangelho de São João. E é verdade. O cristianismo, tal como as outras religiões, naquilo que elas têm de mais belo, são formas de comprometer o indivíduo com a comunidade e de açaimar o animal selvagem e solitário que habita dentro de cada um de nós.
Mas se há coisa que tenho mal resolvida desde que comecei a ter filhos é como lidar com a falta de tempo e com a frustração de não estar à altura das ambições que tinha (e tenho) para mim próprio: precisava de mais horas para ler, de mais tempo para escrever, de mais disponibilidade para viajar. A distância entre desejos e possibilidades é de tal modo desproporcionada que por vezes me sinto agrilhoado aos meus deveres – sensação essa que se agrava por eu me ter casado com uma mulher que leva uma vida de absoluta dedicação aos outros, sejam esses outros os filhos, os amigos, os vizinhos, os doentes, ou (lá para o fim da lista) eu.
Esta frustração não é fácil de resolver, e acaba por ser uma das minhas mais persistentes questões existenciais, porque aquilo que hoje sou se deve em boa medida àquilo que a sociedade, as boas maneiras e a consciência judaico-cristã criticam: um fechamento sobre mim próprio. Ou seja, se eu não tivesse sido a criança (mais ou menos solitária) que fui e se não tivesse sido o adolescente (fechado no seu quarto) em que me tornei, eu não seria quem sou hoje. Não teria lido os livros que li, não teria visto os filmes que vi, não teria ouvido os discos que escutei – e dificilmente estaria a escrever aqui, diante dos seus olhos, caro leitor, com direito a inestimável caricatura e página inteira numa das revistas mais lidas do país.
Eis o terrível dilema: tivesse sido eu mais generoso e sociável e provavelmente não me teria casado com a excelentíssima esposa (que hoje me critica) e não teria tido quatro filhos para me darem cabo do miolo. Donde, o terrível dilema permanece irresolúvel: eu hoje deveria dar mais de mim à minha família, mas se há 25 anos tivesse dado mais de mim esta família não existiria. Quem souber a solução que responda.
E se fosses mulher estarias ainda em pior lençóis, não?
ResponderEliminarSou mulher e com 3 filhos e um excelente marido e sinto exatamente o mesmo!!!
EliminarNão tenho a solução... mas acho que desabafar faz bem, por isso continue!
ResponderEliminarCaríssimo João Miguel Tavares,
ResponderEliminarParabéns, antes de mais, pela belíssima Família que tem!
O meu nome é Catarina, tenho 23 anos, casada, 2 filhas - uma 2 anos, a outra 15 dias -, ambiciono ser um dia mãe de quatro ou mais e não me proponho apresentar uma solução para o seu dilema; mas venho partilhar o meu testemunho na esperança que dê uma ajudazinha.
Pegando na herança judaico-cristã, mais concretamente no livro do Génesis, há 2 relatos da criação do Homem que merecem uma leitura atenta. Em resumo, Deus criou o mundo - "faça-se.." -, os animais -"faça-se.."-, as plantas -"faça-se..."-, e por fim o homem - "façamos..."- à Sua imagem e semelhança, para tal invocando a própria Trindade.
Assim:
1. O homem será fruto de um ser em comunhão.
Prosseguindo a leitura destes relatos, constata o Homem que tudo é maravilhoso e sobre tudo tem ele poder. Contudo, constata igualmente que nada é igual a ele: nem o que foi criado, nem o Criador. Por isto, experimenta a solidão original no Paraíso e Deus percebe que o homem só será verdadeiramente feliz na entrega a um ser semelhante ao próprio homem: decide, pois, criar a mulher.
2. O homem só concretizará, assim, os anseios do seu coração na comunhão com outro ser semelhante; afinal de contas é fruto de um Deus Trinitário, e criado à sua imagem.
Isto para mim é profundamente inspirador no que toca a constituir Família.
Por essa razão, aderi facilmente a esta visão do casamento, e casei-me com 20 anos, consciente de que estava a assumir o maior compromisso da minha vida, até à morte: o Amor exige a entrega total de mim ao outro, como fim em si mesmo. O verdadeiro paradoxo: a doação total para a liberdade total. Liberdade enquanto possibilidade de escolher sempre, não bem, mas O bem.
Ou seja, a família é a nossa extensão. Esta doação total e permanente não significa anulação, bem pelo contrário, por ninguém pode dar o que não tem..
Eu era excelente aluna. De 20. Senhora do meu nariz, metida em mil organizações que correspondiam aos meus desejos para a Humanidade. Todos fizeram previsões de grande carreira académica, e eu mesma estava convencida que por esta altura já estaria a dar cartas em Harvard, ou noutra instituição de prestígio, como assistente promissora de uma área muito interessante de Direito.
Entrei com 18 anos da Universidade, no primeiro mês conheci o Miguel e passados 2 anos casámo-nos. Bum, lá se foram os planos galácticos.
Conclusão? O curso está por acabar, tive que mudar de Universidade, as notas estão longe do que já foram, nunca tivémos tantas dificuldades materiais e estou tão próxima de ser assistente de Direito em Harvard como Portugal da Austrália.
Mas nunca fomos tão felizes. E o curso está por acabar porque 2 miúdas lindas decidiram nascer em cima da época de exames. Vai ficar por acabar? Não, já estou a estudar para a época que se avizinha. Os sonhos ficam por concretizar? Não, jamais.
E estou arrependida da minha decisão? Nunca, isso seria dizer que estava arrependida de escolher ser feliz.
Mas agora jogamos com outros dados. Não sou só eu, somos nós, e este é o ponto de partida. Encontramos os sonhos de todos e pelo caminho até os superamos.
Sim, há dias que dá vontade de gritar e de fazer mute ou stop e respirar 10 minutos antes de voltar à realidade, mas se a vida não fosse assim não tinha piada nenhuma.
Por isso...e eu? Eu continuo a ser a Catarina que vai acabar o curso num futuro próximo, que vai ter uma carreira brilhante nalguma coisa, que canta, dança e escreve. Mas que para além disso é mulher do Miguel e mãe da Pilar e da Assunção. E isto também passou a ser constitutivo do meu ser, e naturalmente se reflecte naquilo que dou de mim a todas as coisas.
Sou mais feliz a dar-me, do quando era só eu, no meu mundo. E, não querendo ser demasiado aristotélica, mas acho que estamos cá para isto mesmo, ser felizes.
Verdadeiramente inspirador!!!! Obrigado Catarina pelo seu fabuloso testemunho...o perceber que às vezes as coisas acontecem quando tem de acontecer e não como tinham sido imaginadas anos a fio tem muito que se lhe diga, o abrir mão do reconhecimento e estabilidade profissional por eles... são coisas que me deixaram sempre com o coração apertado mas com a certeza de ter feito a escolha certa!!!
EliminarMaravilhoso testemunho Catarina .... fui lá buscar combustível para este momento difícil que atravesso.
Eliminarobrigada
Parece que o destino é uma máquina bem oleada que, misteriosamente, faz tudo funcionar... :)
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"The great moments of your life won't necessarily be the things you do. They'll also be the things that happen to you. Now, I'm not saying you can't take action to affect the outcome of your life. You have to take action. And you will! But never forget, that on any day, you could step out the front door, and your whole life could change forever. You see the Universe has a plan kids; and that plan is always in motion. A butterfly flaps its wings, and it starts to rain. It's a scary thought, but it's also kind of wonderful. All these little parts of the machine constantly working... Making sure that you end up exactly where you're supposed to be.. exactly when you're supposed to be there. The right place. At the right time."-Ted Mosby
Fácil: Fizeste um bom uso da ética individualista quando pudeste e quando ela fazia sentido na tua vida. Leste, estudaste, tornas-te maior e, nesse processo, construíste a tua individualidade (da qual podes estar orgulhoso, com certeza). Mas não permaneceste (por escolha, suponho)encerrado em ti: casaste-te (por escolha, suponho), tiveste filhos(por escolha, suponho)e, em consequência, as tuas condutas, rotinas e liberdades deixaram de te dizer apenas respeito a ti. Assim sendo, caro JMT, está na hora de deixar o umbiguismo!!DN
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