Ilustração de José Carlos Fernandes
Eis o meu texto de ontem na revista do CM:
Quando eu tinha quase quatro anos de idade fui atropelado por um automóvel em Portalegre. Não me aconteceu nada de especial: a rua onde vivíamos era estreita e os carros circulavam devagar. Mas foi suficientemente impressionante para o acontecimento passar a fazer parte da mitologia familiar. Eu não me lembro de nada, nem de pneus a chiar, nem da pancada no metal, nem do corpo no asfalto, mas recordo-me de escutar, ao longo da infância, dezenas de “queres ser outra vez atropelado?” assim que me aproximava de forma mais desabrida de uma estrada.
O medo não pegou, contudo. Evito cultivar traumas de infância e resisto a ser consumido pelo receio de que alguma coisa aconteça aos meus filhos. Se pensarmos demasiado nisso, qualquer coisa pode acontecer em qualquer altura, até rãs a chover dos céus, como no filme Magnólia. Isso é paralisante. Sabendo nós à partida que o pior está garantido – “como moscas para meninos travessos, assim somos nós para os deuses”, escreveu Shakespeare no Rei Lear –, o mais sensato é viver esperando pelo melhor. E esse melhor não se consegue alcançar tentando obcecadamente proteger os filhos de todos os perigos, mas sim ensinando-os a reconhecê-los e a enfrentá-los.
Não tenho grandes certezas sobre educação, um mundo vastíssimo e complexo que a nossa inteligência está longe de abarcar. Mas estou convencido de que se conseguirmos incutir nos nossos filhos confiança, responsabilidade e independência, boa parte do nosso trabalho estará feito. Eu esforço-me por isso, e sempre tive muito orgulho na forma como os mais pequenos andam sozinhos na rua sabendo perfeitamente parar e esperar pelos pais quando chegam ao pé de uma estrada.
Isto até ao dia – aconteceu há duas semanas – em que qualquer coisa passa pela cabeça do Gui e ele decide atravessar sozinho a rua de São Bento. Não lhe aconteceu nada, era sábado e naquela altura não estavam a passar carros, mas acontecimentos como este, completamente imprevisíveis, são suficientes para abalar a nossa confiança e nos obrigar a rever tudo outra vez. A verdade é que a espécie humana não está programada para aceitar que um erro possa acontecer sem que nada esteja a ser mal feito. Por isso, o Gui passou a estar sob prisão rodoviária preventiva – agora anda na rua de mão dada. E a minha brilhante teoria? Continua óptima. Só está a recuperar do susto.
Os miúdos serão sempre isso mesmo, miúdos, por mais "treinados" que estejam, nunca se sabe o que lhes pode passar pela cabeça, por isso a melhor solução é nunca confiar demasiado, porque a coisa pode correr mal, e depois não há volta a dar.
ResponderEliminarÁs vezes podemos achar que até estamos a ser exagerados, mas realmente esse também é um dos nossos papeis, defender os nossos filhos deles próprios, até terem idade para saberem fazer isso.